Documentos históricos

Fonte: WikiLAI
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A Lei de Acesso à Informação (LAI) não permite “sigilo eterno” de documentos públicos. Documentos secretos precisam ser classificados por nível de sigilo, devendo respeitar tempos pré-determinados de cinco até no máximo 25 anos, e somente algumas autoridades do alto escalão do governo podem classificar um documento. Quando vence o prazo de sigilo, os documentos passam a ser desclassificados, ou seja, podem ser acessados por qualquer cidadão com base na LAI.

Essa previsão legal foi fundamental para o trabalho do historiador Paulo Cesar Gomes, historiador e autor do livro “Liberdade vigiada: as relações entre a ditadura militar brasileira e o governo francês – do golpe à anistia”[1]. Em entrevista à agência Fiquem Sabendo, em 2019, ele contou que a LAI mudou o trabalho de pesquisadores e historiadores[2], pois busca implantar o livre acesso, em detrimento da cultura do sigilo. Em casos recentes, pedidos de informação feitos por pesquisadores ajudaram a revelar episódios históricos, como crimes cometidos na Ditadura Militar.

Herança militar

Apesar da vigência da LAI, especialistas ainda apontam dificuldades de acesso a dados das Forças Armadas. A pesquisadora Karina Furtado Rodrigues, em tese de doutorado defendida em 2017[3], registrou que militares foram resistentes a incluir na LAI um limite de tempo para manter um documento em segredo e discordavam da divulgação automática de documentos desclassificados. Em pesquisa de mestrado concluída em 2021, o jornalista Luiz Fernando Toledo mostrou que, na prática, os militares continuam mantendo seus atos sob sigilo, buscando todo tipo de brechas legais para driblar a LAI. Por exemplo, trabalho adicional, pela necessidade de ter que analisar cada documento para tarjar eventuais informações sensíveis ou que possam colocar a segurança nacional em risco.

A recomendação dada ao pesquisador é fazer pedidos de acesso a no máximo 15 documentos em cada demanda. “Cada pedido de informação registrado por meio da LAI à Marinha leva, em média, 21 dias para ser respondido, segundo a CGU. Só a Marinha desclassificou, entre 2013 e 2020, 69.315 mil documentos. Para ter acesso a todos eles, seriam necessários 4.621 pedidos de informação divididos em quinze documentos por vez. Se a média de 21 dias por pedido fosse seguida, seriam necessários 97.041 dias, ou 265 anos. Isso sem falar dos outros documentos que seriam desclassificados nesses dois séculos e meio”, exemplificou o jornalista em coluna da Piauí sobre a pesquisa[4].

Casos concretos

No projeto Sem Sigilo[5], da Fiquem Sabendo, Luiz Fernando Toledo junto com a jornalista Maria Vitória Ramos e voluntários em vários estados brasileiros, já haviam revelado que mais de 300 documentos considerados públicos tiveram acesso negado[6]. O projeto continua buscando abrir todos os documentos desclassificados do governo federal, com ajuda de voluntários. Somente em 2020, havia mais de 100 mil documentos sob sigilo no governo federal, com foco nas Forças Armadas, especialmente na Marinha[7].

Em parceria[8] com a organização Muckrock, que é especializada em acessar dados públicos nos Estados Unidos, a FS também revelou, em 2019, documentos do governo americano que narram episódios como a conversa entre Pelé e um presidente americano[9], e um memorando da CIA, a agência de inteligência dos EUA, sobre a relação Igreja e Estado no Brasil durante a Ditadura Militar[10].

Em 2021, a FS fechou parceria com o Instituto Vladimir Herzog (IVH)[11] para acessar dados e documentos históricos no Brasil. "A parceria irá fortalecer a missão do IVH na luta por memória, verdade e justiça no país, uma vez que as informações levantadas poderão embasar as ações institucionais voltadas para: a responsabilização do Estado brasileiro frente a crimes cometidos durante a ditadura civil-militar; a busca por responsáveis pelas violações de direitos humanos em outros períodos; a cobrança pelo aprimoramento e a proposição de bons caminhos para políticas públicas do sistema de perícia criminal; em suma, para a garantia das recomendações da Comissão Nacional da Verdade por meio do Núcleo Monitora CNV[12]".

Um dos documentos divulgados por meio da parceria foi o inquérito completo de Jair Bolsonaro no Superior Tribunal Militar (STM)[13]. Os documentos foram revelados inicialmente no livro "O cadete e o capitão: A vida de Jair Bolsonaro no quartel"[14], do jornalista Luiz Maklouf Carvalho.

Em 2023, o Tribunal de Contas da União aceitou denúncia da FS, feita em parceria com o advogado e professor da Universidade Federal de Rondônia, Vinicius Valentin Raduan Miguel, e determinou que o Ministério dos Direitos Humanos localize e publique documentos produzidos pelo Conselho Nacional de Direitos Humanos entre 1965 a 1992. Durante o governo Bolsonaro, o Ministério da Justiça e Segurança Pública e o antigo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos disseram não saber onde estavam os documentos[15].

Crime do século

Processo revela detalhes sobre tortura praticada por oito militares do Exército e dois civis contra 15 soldados durante a ditadura militar no Brasil (Fonte: Reprodução/Fiquem Sabendo)

A Fiquem Sabendo e o Instituto Vladimir Herzog (IVH) obtiveram com exclusividade a íntegra do processo militar que narra uma série de crimes cometidos por oito militares do Exército e dois civis contra 15 soldados, conforme divulgado em edição especial da newsletter Don't LAI to me, em outubro de 2022[16]. Os fatos aconteceram no quartel do 1° BIB, em Barra Mansa (RJ), no início dos anos 1970. A newsletter divulgou a íntegra do processo[17], com detalhes da sessões de tortura, documento que permaneceu inacessível por 50 anos. A primeira investigação do documento resultou na reportagem “O crime do século”, publicada pela revista piauí[18]. Segundo a cientista política Glenda Mezarobba, autora da reportagem e conselheira do instituto, "até onde se tem conhecimento, o processo n° 17/72 constitui o único caso em que militares foram condenados em última instância por graves violações de direitos humanos ocorridas durante os 21 anos de arbítrio no Brasil"[16].

"O inquérito relata que militares torturaram 15 soldados com palmatórias, canos, prensa e choques elétricos, entre outros instrumentos de suplício. O pretexto para a tortura foi uma investigação sobre o uso e tráfico de drogas (maconha) dentro no quartel. Os militares foram acusados dos seguintes crimes: homicídio qualificado, lesão grave, dano, inutilização e sonegação de material probante, ofensa aviltante a inferior e abandono de pessoa. As graves violações de direitos humanos foram perpetradas em dependências das Forças Armadas contra jovens de 19 anos, em sua maioria, e resultaram na morte de quatro deles"[16].

O processo revelado pelas organizações tem cerca de 2,3 mil páginas distribuídas em cinco volumes, com relatos de sobreviventes, testemunhas e dos próprios acusados sobre os crimes cometidos. O processo se tornou público graças a requerimento protocolado pelo diretor de advocacy e cofundador da Fiquem Sabendo Bruno Morassuti. "O fornecimento dos documentos dos processos judiciais pelo STM sem qualquer tipo de restrição nessas informações representa um exemplo importante para fins de transparência do Poder Judiciário e mostra interesse em cumprir a LAI mesmo com informações que poderiam ser consideradas sensíveis", comentou o advogado[16]. A cofundadora e diretora-executiva da FS Maria Vitória Ramos destacou a cooperação entre as duas organizações para a abertura das informações: “O IVH sabe o que é importante buscar e nós podemos contribuir encurtando o caminho do acesso a informações públicas"[16].

Caso Rubens Paiva

Na edição 144[19] da newsletter Don't LAI To Me, em abril de 2025, a Fiquem Sabendo revelou informações detalhadas da carreira dos militares envolvidos na morte do ex-deputado Rubens Paiva, assassinado em 1971 nas instalações do Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI). Foi solicitado via Lei de Acesso à Informação (LAI) o inteiro teor digitalizado das fichas funcionais de cinco oficiais mencionados no relatório da Comissão Nacional da Verdade: Freddie Perdigão Pereira, Rubem Paim Sampaio (Rubens, na ficha enviada pelo Exército), Raymundo Ronaldo Campos, Jacy Ochsendorf e Jurandyr Ochsendorf. Segundo a investigação da Comissão da Verdade[20], os cinco militares teriam se envolvido de diferentes formas no episódio. Freddie Perdigão Pereira e Rubem Paim Sampaio participaram da recepção e do interrogatório de Rubens Paiva no DOI-CODI, mas não foram apontados diretamente como responsáveis por sua morte. Já Raymundo Ronaldo Campos, Jacy Ochsendorf e Jurandyr Ochsendorf atuaram na tentativa de encobrir o desaparecimento por meio da farsa do resgate, embora também não tenham sido vinculados diretamente à morte no relatório.

A investigação identificou Antônio Fernando Hughes de Carvalho como o agente responsável por torturas. O então major José Antônio Nogueira Belham, à época comandante do DOI, é considerado responsável pela morte e desaparecimento de Rubens Paiva, em razão de seu conhecimento e consentimento das práticas de tortura. A FS também já protocolou pedidos de informação para obter as fichas de Hughes e Belham.

Inicialmente, o Exército enviou somente extratos parciais das fichas funcionais dos cinco militares citados, onde há informações sobre o último posto ocupado, o tempo total de serviço e quando foram para a reserva (a forma de aposentadoria no âmbito militar). "Também constam os cursos militares realizados, as promoções recebidas e os cargos ou funções exercidos ao longo da carreira, com registros anteriores e posteriores à morte do ex-deputado Rubens Paiva. Além disso, os documentos trazem referências elogiosas registradas oficialmente. Ainda que resumidos, esses dados permitem mapear parte do percurso institucional dos envolvidos no episódio e reforçam a importância do acesso às fichas completas, com transparência e integralidade. Os documentos indicam, por exemplo, que todos os cinco militares foram promovidos tanto antes quanto depois da morte do deputado", conforme destaca a newsletter[19].

Veja também

Referências externas

  1. Liberdade vigiada: As relações entre a ditadura militar brasileira e o governo francês: Do golpe à anistia (Paulo César Gomes, 2019) - https://www.amazon.com.br/Liberdade-vigiada-rela%C3%A7%C3%B5es-ditadura-brasileira/dp/8501114642
  2. Para historiador, LAI muda a relação da sociedade com tudo o que é público (Fiquem Sabendo, 2019) - https://fiquemsabendo.com.br/transparencia/historiador-lei-de-acesso/
  3. Democratic Transparency Pacts on Defense: Assessing change in civilian access to military information in Brazil and Mexico (FGV, 2017) - http://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/bitstream/handle/10438/18848/Karina%20Rodrigues%20-%20Dissertation.pdf?sequence=1&isAllowed=y
  4. Transparência tarja preta (piaui, 2021) - https://piaui.folha.uol.com.br/transparencia-tarja-preta/#
  5. Sem Sigilo (Fiquem Sabendo) - https://fiquemsabendo.com.br/transparencia/projeto-sem-sigilo/
  6. Órgãos federais negam acesso a 323 documentos considerados públicos (UOL, 2019) - https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2019/06/04/governo-sigilo-documentos-liberados-publico-transparencia.htm
  7. Sigilo na LAI: onde e como obter documentos secretos (Fiquem Sabendo, 2020) - https://fiquemsabendo.com.br/transparencia/sigilo-documentos-sigilosos-dos-governos/
  8. FS anuncia parceria com MuckRock, organização especializada na Lei de Acesso à Informação americana (Fiquem Sabendo, 2019) - https://fiquemsabendo.com.br/transparencia/parceria-muckrock/
  9. A CIA e o Pelé: parceria FS e MuckRock (Fiquem Sabendo, 2019) - https://fiquemsabendo.com.br/transparencia/pele-e-a-cia/
  10. Memorando inédito da CIA: a Ditadura e a Igreja no regime Médici (Fiquem Sabendo, 2019) - https://fiquemsabendo.com.br/transparencia/documento-cia-ditadura-e-igreja/
  11. https://vladimirherzog.org/
  12. https://memoriasdaditadura.org.br/nucleo-monitora-cnv/
  13. https://drive.google.com/drive/folders/1ofcvq8ZbxwY5b0zlvDsm_i5TOT68Qk0i?usp=sharing
  14. O Cadete e o Capitão é leitura obrigatória para decifrar o Mito, diz Mario Rosa (Poder 360, 2019) - https://www.poder360.com.br/opiniao/o-cadete-e-o-capitao-e-leitura-obrigatoria-para-decifrar-o-mito-diz-mario-rosa/
  15. Denúncia documentos Conselho Nacional de Direitos Humanos (Fiquem Sabendo, 2023) - https://www.linkedin.com/posts/agenciafiquemsabendo_o-tcu-aceitou-a-nossa-den%C3%BAncia-e-determinou-activity-7072542783638560768-PCiS/?utm_source=share&utm_medium=member_android
  16. 16,0 16,1 16,2 16,3 16,4 EXCLUSIVO: Abrimos o processo dos militares condenados por tortura durante a ditadura - Don't LAI to Me (Fiquem Sabendo, 2022) - https://fiquemsabendo.substack.com/p/exclusivo-abrimos-o-processo-dos
  17. https://www.documentcloud.org/projects/ditadura-files-210010/
  18. O crime do século (piauí, 2022) - https://piaui.folha.uol.com.br/materia/o-crime-do-seculo/
  19. 19,0 19,1 Caso Rubens Paiva: conseguimos informações das fichas funcionais de cinco militares envolvidos na morte do deputado - Don't LAI to Me #144 (Fiquem Sabendo, 2025) - https://news.fiquemsabendo.com.br/p/caso-rubens-paiva-conseguimos-informacoes
  20. Relatório preliminar (Comissão Nacional da Verdade, 2014) - https://drive.google.com/file/d/1_ley8ZNvSLS21atYDLjIy4pNZLyQszds/view

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